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TEXTO CURATORIAL

Guilherme Dable — Não um tempo, mas um lugar

Por Francisco Dalcol, diretor-curador do MARGS; Fernanda Medeiros, curadora-assistente do MARGS

Na pintura de Guilherme Dable, o que se dá a ver como obra não é exatamente a conclusão definitiva e acabada de um processo, e sim a possibilidade de uma interrupção decisiva. Há resolução, contudo como ato de agir sobre a incerteza e a imprevisibilidade que pautam o transcorrer do trabalho. A pintura como que sobrevém de um corte operado por um ato de consciência do caminho percorrido. Resulta de um tempo de embate e ação, mas também e sobretudo de um lugar alcançado.

O elemento fundante é o desenho. No entanto, a linha, ao mesmo tempo que demarca e delimita, deixa-se transbordar. Mesmo sentido de contaminação pode ser dito das referências da música e da literatura e dos procedimentos experimentais, no que têm em comum serem tomados pelo artista como princípios — ou melhor, pretextos — com os quais aciona e ampara em atravessamento o seu modo de observar o mundo e levá-lo para dentro do ateliê, em um constante exercício de perceber e recolher aquilo que repousa sobre as feições do cotidiano e a aparência das coisas.

Essa compreensão nos movimenta ao campo da representação visual, o que pode prenunciar alguma discussão tida por superada ou mesmo trivial, mas que aqui acaba por se recolocar por tornar ainda mais intensa a experiência proporcionada por suas obras, porque as complexifica na medida em que aderem à tonalidade e à espessura da história artística.

Na história da arte, observar a passagem de uma “pintura que representa algo” para uma “pintura que se apresenta nela mesma, como objeto e coisa em si, que cria sua realidade própria” — ou seja: a passagem de uma pintura que narra em registro naturalista com referência a um índice real; para uma pintura que apenas e somente é, por referir-se e expressar-se em si mesma — oferece uma via fundamental para a compreensão do que seria a pintura contemporânea. E que situa onde a pintura de Guilherme Dable se inscreve nessa longeva tradição.

Contudo, e aí está outro dado interessante, isso não significa que querelas antigas como a disputa entre figuração e abstração, por certo ultrapassada em sua simples dicotomia, não possam apontar para novas questões sob outros enquadramentos, uma vez que o tempo histórico, o da arte incluído, irremediavelmente nega o desígnio linear, progressivo e evolutivo, assumindo-se como concomitante com seus recuos, retomadas e mesmo permanências.

A notável tensão entre aspectos figurativos e abstratos nas obras de Guilherme Dable, na coordenação ambivalente e por vezes concorrente entre figura/fundo, superfície/profundidade e planos sobrepostos, renova o entendimento dessa reflexão, redimensionando sua complexidade. E o faz, todavia, rearticulando os elementos figurativos e abstratos em seu habitual entendimento; pois mesmo o aspecto construtivo, as estruturas geométricas e sobretudo os materiais e procedimentos (tintas e cores entre o chapado e a transparência, mas também fitas em colagens presentes ou removidas) não podem ser vistos como absolutamente abstratos, uma vez que seus referentes já estão dados e informados pela forma e matéria, encontrando seus correspondentes como tipo de figuração também.

Paradoxo semelhante pode ser pensado sobre as manchas, os escorridos e os campos de cor, que oscilam entre abundantes e rarefeitos — e sempre como presenças constantes e características em suas obras —, porque também aí o caráter informal e gestual habitualmente vinculado à abstração acaba por encontrar seus índices a partir de uma ambiguidade da figuração ocasionada pelo nosso repertório de imagens.

Por tudo isso, a pintura de Guilherme Dable é exemplar, uma vez mais, da investida da linguagem pictórica contemporânea em confrontar e jogar com as fronteiras limítrofes dos pressupostos erguidos pelo abstracionismo, informalismo, construtivismo e expressionismo. Pois é na opacidade dessas zonas aparentemente delimitadas, porque porosas e desdefinidas, que repousa um dos aspectos mais interessantes da pesquisa visual, conceitual e poética do artista. Do que advém um interesse sempre renovado nos desdobramentos do percurso de sua produção.

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